Presencing EPIS
ISSN 2166-5648
A primazia do indivíduo como portador da lei moral: a psicanálise de Otto Rank e a ética de Immanuel Kant
Julio Roberto Costa, M. Sc.
Resumo
Otto Rank colocou a questão humana da busca pela permanência por meio da vida simbólica, onde se inclui o pertencimento a um grupo com que o indivíduo se identifique. Historicamente, isso se constituiu na tribo, no clã, na nação etc., enquanto uma unidade que precisa ser afirmada em oposição aos outros grupos. Pelo fato de que essa afirmação do valor simbólico do pertencimento a um grupo necessitava negar o valor dos outros, Otto Rank via aí a origem real dos conflitos entre grupos, inclusive das guerras. Esse conceito foi desenvolvido por Ernest Becker. Porém, na medida em que se observa Rank como um expoente do idealismo alemão, observa-se igualmente que ele preserva um espaço de liberdade do indivíduo, que podemos conceber como fundamentado na filosofia moral kantiana. Assim, se o que caracteriza o sujeito humano são as escolhas feitas de modo livre pela razão, constatamos que o ser humano, nas obras de Rank, possui uma liberdade de escolha, que podemos identificar como influência de Kant, no ato de se agir conforme a razão em seu aspecto prático. Portanto, procuramos mostrar que os textos de Rank são coerentes com a herança da razão prática de Immanuel Kant, e, por meio dessas escolhas em relação ao agir, a afirmação do ser não necessita necessariamente da negação do outro, ou seja, pode prescindir da violência.
Introdução
A obra de Otto Rank traz muitos desafios para quem o lê. Embora seja altamente rica em significado e profundidade de análise, os conceitos de Rank estão difusos ao longo de toda a sua obra. Além disso, depois que Rank foi excluído da Sociedade Psicanalítica de Viena, realmente parece que ele sabia que não iria ser compreendido, tal como colocou E. James Lieberman em sua biografia de Rank, Acts of will. Isso pode ser pertinente ao fato de que ele não teve como formar uma escola, muito menos ter os seus próprios alunos.
O que se torna visível na leitura de seus livros é a presença da filosofia, principalmente de Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche e Arthur Schopenhauer. Kant, mencionado como o grande nome da ética; Schopenhauer, como quem evidenciou o mundo como expressão da vontade; e o jovem Nietzsche, enquanto o grande pragmático, onde a necessidade de afirmação do ser, por sua vez fundamentada na vontade – único sujeito realmente existente – tinha primazia sobre a avaliação conceitual ou moral dessa expressão.
A questão da morte e da finitude, tal como colocada por Rank, leva em consideração a busca de uma solução simbólica para o problema da permanência do indivíduo, visto que no mundo da natureza essa solução é impossível. Assim, segundo Rank, toda construção simbólica tem como tarefa primordial elevar o ser humano acima da natureza, o que inclui uma conexão com a simbologia de permanência dos grupos a que o indivíduo pertence. Esse pertencimento, tais como ao clã, à tribo ou à nação, funciona enquanto meio de se assegurar a permanência por via de uma imortalidade coletiva, ou seja, no grupo. Essa imortalidade simbólica necessita colocar o grupo acima da natureza e acima dos outros grupos. A partir da obra de Rank, Ernest Becker irá enfatizar o aspecto, mencionado por Rank, do quanto a simbologia de permanência do outro pode ser um desafio para a simbologia de permanência de “nosso” grupo. Abre-se, portanto, um espaço para justificar a desqualificação, vitimização, e mesmo destruição do outro.
Os fundamentos da psicanálise de Otto Rank e a questão da permanência
Segundo Otto Rank, a expressão da vontade no ser humano, contrastando com a sua finitude e mortalidade, apenas encontra uma possível resolução por meio do repertório simbólico da cultura. O papel do indivíduo, no legítimo desenvolvimento de si próprio, é encontrar a sua expressão de forma criativa, onde ele soma a sua contribuição com o repertório da comunidade.
O indivíduo criador, o artista, produz significados que validam a sua própria expressão no mundo. Ele faz isso contra a pressão pela conformidade, e vivencia internamente toda uma dinâmica de vontade, culpa e afirmação, de forma a conseguir o seu objetivo. Porém, não irá se desassociar do pertencimento à comunidade.
Apesar da ênfase de Rank ser o indivíduo, a expressão do indivíduo subjaz em um ambiente preenchido pela cultura, e encontra um repertório simbólico que é coletivo, que acolhe o indivíduo. É justamente essa conexão com a comunidade que diferencia o indivíduo criativo e produtivo do indivíduo neurótico, a quem falta essa conexão (Rank, s. d., p. 173). Igualmente, Rank nos coloca que a expressão artística se originou como coletiva; a obra de arte não era individual, mas social, e traduzia o compartilhamento comunitário da experiência prazerosa da afirmação da vontade humana no mundo (Rank, 1989, p. 397).
Assim, o indivíduo oferece conteúdos à comunidade, ressignificando e reelaborando a simbologia pré-existente, de forma a trazer significação legítima e sincera ao seu lugar no mundo. Ele se torna, cada vez mais, em sujeito que produz significados, em um mundo social que é preenchido por significados compartilhados. A simbologia é, assim, um fator de integração do indivíduo.
Observemos, porém, os rumos que a vontade pessoal pode tomar. Como uma resultante do pensamento kantiano, temos que o indivíduo necessita buscar a autonomia, o que significa afirmar o direito de fazer as suas próprias escolhas. Vemos que a heteronomia é a negação do sujeito, e a autonomia a sua afirmação. Torna-se necessário, portanto, negar tudo o que possa submeter a pessoa. Frequentemente, a tendência é se pensar essa forma de submissão como se impondo apenas do mundo exterior, mas, pela influência de Immanuel Kant, Rank coloca que os determinismos biológicos, na medida em que se apresentem semelhantes ao conceito de inclinações na filosofia moral kantiana, também são vistos, pelo sujeito, como uma coerção contra a sua vontade livre.
Neste ponto, podemos apresentar algumas das posições de Ernest Becker. Na visão de Becker, essa afirmação do aspecto simbólico se constitui como a construção de um alter-organismo, de natureza simbólica, que se sobrepõe ao organismo biológico, de forma a afastar da consciência a lembrança do limite biológico à existência. Assim, visto que a perpetuação biológica é impossível, será necessária a busca pela perpetuação simbólica, e temos a negação da morte.
Um desdobramento importante da negação da morte serão os mecanismos de divisão social entre “nós” e “eles”, que terão a função de separar aqueles que supostamente merecem a imortalidade (“nós”), daqueles que, supostamente, têm pouca importância no mundo, ou, até mesmo, merecem morrer, ou seja, “eles”. Becker se fundamenta em Otto Rank quando este nos diz que o desejo de permanência no ser humano procura uma simbologia de imortalidade coletiva, de modo que a imortalidade pessoal possa ser assegurada por meio da continuidade do clã, da tribo ou da nação. Sob o ponto de vista da necessidade de permanência simbólica, essa é a origem da vitimização de todos os grupos que são considerados diferentes, e igualmente, a origem real dos conflitos armados. Conforme Rank, quando um grupo sente a necessidade de se considerar um “povo escolhido”, que possui o destino de oferecer, de forma exclusiva, a permanência a seus iguais, torna-se coerente “excluir os diferentes das bênçãos da eternidade” (Rank, 1958, p. 41).
Longe de desmerecer Rank, esse mapeamento de sua posição na história intelectual nos ajuda a observar o alcance de suas contribuições, muitas ainda pouco exploradas, seja no campo da teoria, seja em sua aplicação para se procurar soluções para as demandas da sociedade. A contribuição da filosofia kantiana em sua obra, se melhor estudada, pode fornecer valiosa contribuição para as contingências apontadas por Ernest Becker em relação à vitimização do outro; igualmente, a melhor forma de entendermos a liberdade em Rank é nos referirmos à liberdade na filosofia de Immanuel Kant, uma das raízes de seu pensamento.
Otto Rank, a filosofia e a herança de Kant
Como influência de Kant, Otto Rank não via como importante apenas a vontade, a partir de sua afirmação por Schopenhauer e Nietzsche. Ele via também como importantes os atos de vontade, capazes de serem feitos por um sujeito autônomo, que tem escolhas. A autonomia é a capacidade da razão em fazer escolhas, no momento em que se defronta consigo própria, e precisa obter respostas para a pergunta: “como devo agir? ”. No criticismo exercido nesse ponto, ou seja, dentro das fronteiras do que pode ser conhecido ou pensado pelo ser humano, Kant evidenciou a moral como um assunto prático da razão, colocando um limite à especulação metafísica, de forma coerente com o conhecimento possível.
Na filosofia kantiana, é básica a distinção entre o que pode ser conhecido e o que pode ser apenas pensado. Tudo o que pode ser conhecido pode ser pensado, porém, existem coisas que podem ser pensadas, mas não podem se conhecidas. O conhecimento provém do mundo sensível, e, assim, não podemos conhecer aquilo que não nos provoca nenhuma impressão sensorial. Por essa via, Kant nos diz que a razão especulativa, quando procura conhecer aquilo que não produz experiência sensível, não encontra nada, e a partir daí tudo o que for dito será metafísica, ou seja, no dizer de Kant, engano e ilusão da razão, em seu aspecto especulativo.
Assim, é importante observar que quem cria as ilusões é a razão pura, na medida em que ela se se ocupa de uma atividade da qual não possui uma experiência sensível, sendo, portanto, apenas especulação. Em contrapartida, quando a razão se defronta consigo própria, na medida em que se depara com a questão “como devo agir? ”, sem poder ser guiada por objetos da intuição sensível, ela terá de se colocar como a razão de um ser que faz escolhas. Nesse ponto, ela se torna razão prática, pois a ação será agora movida pelas escolhas, pela liberdade: “prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade” (Kant, 2008, p.650).
Nesse ponto, viria a questão: mas essa escolha, aparentemente livre, não seria movida por forças a que o próprio sujeito não tem acesso? O que Kant nos coloca aqui é o problema da razão especulativa em relação a coisas das quais não se tem experiência sensível. Quando a razão especulativa procura entender aquilo de que não se tem essa experiência, o produto de sua atividade só pode ser a ilusão. Conforme Kant, quem criou as antigas metafísicas foi a razão especulativa. Portanto, se existe um motor para a escolha prática, do qual não se tem nenhuma experiência sensível, só é possível, nos termos da razão pura, especular sobre ele, o que equivaleria a criar uma nova metafísica da escolha moral. Em oposição a isso, Kant coloca em relevo o fato de que a razão, quando se pergunta “como devo agir? ”, se vê defrontada apenas consigo mesma, e não pode se guiar por objetos de uma intuição inteligível, pois esses objetos puros não podem ser concebidos. Como Kant nos coloca, a razão:
“(…) pressente objetos que têm para ela um grande interesse. Entra no caminho da especulação pura para se aproximar deles, mas eles fogem à sua frente. Possivelmente, será de esperar mais sucesso no único caminho que lhe resta ainda, ou seja, o do uso prático. ” (Kant, 2008, p. 645).
Portanto, a necessidade prática sobrepuja a teorização especulativa, pois, se não temos como saber, continuamos sendo forçados a agir, e vemos a relevância da questão da prática. Vista a ausência de experiência sensível quando a razão se defronta com as escolhas do “como devo agir? ”, a liberdade desse espaço necessita ser postulada:
(…) saber se a própria razão, nos atos pelos quais prescreve leis, não é determinada, por sua vez, por outras influências e se aquilo que, em relação aos impulsos sensíveis se chama liberdade, não poderia ser, relativamente a causas eficientes mais elevadas e distantes, por sua vez, natureza, em nada nos diz respeito do ponto de vista prático, pois apenas pedimos à razão, imediatamente, a regra de conduta; é, porém, uma questão simplesmente especulativa, que podemos deixar de lado, na medida em que para o nosso propósito só temos apenas o fazer ou o deixar de fazer. Conhecemos, pois, por experiência, a liberdade prática como uma das causas naturais, a saber, como uma causalidade da razão na determinação da vontade (…). (Kant, 2008, p. 650).
Assim, na experiência, o ser humano, embora não tendo acesso ao númeno enquanto objeto, se fundamenta no mundo inteligível do númeno para a sua ação prática. Conforme Kant, aquilo que é prático é proporcionado pela liberdade, que existe independentemente das condições sensíveis e causais dos fenômenos. Assim, mesmo que o conceito seja, conforme Kant, “teoricamente vazio”, uma vez que ele pode ter uma utilidade moral, ou seja, uma aplicação prática, não pode ser negligenciado como motor da ação humana, devendo, portanto, ser pensado como real, mesmo que não possa ser conhecido:
[…] o conceito de um ente que possui vontade livre é o conceito de uma causa noumeno. […]. Ora, o conceito de uma causalidade empiricamente incondicionada é, na verdade, teoricamente vazio (sem uma intuição que lhe convenha), contudo sempre possível, e refere-se a um objeto indeterminado; em contrapartida, porém, lhe é dada significação na lei moral, portanto em uma relação prática, de modo que em verdade não possuo nenhuma intuição que lhe determinasse a realidade teórica objetiva, mas nem por isso ele deixa de ter uma aplicação efetiva, que pode apresentar-se in concreto em disposições ou máximas, isto é, ter realidade prática que pode ser indicada. (Kant, citado por Silva & Silva, in Espaço Pedagógico, Vol. 21, Nº. 1, p. 133).
Essas escolhas práticas evidenciarão, em todo momento, o quadro maior do pertencimento do sujeito a um universo que possui sentido pela ação do sujeito, sendo esse sentido compartilhado de forma ativa, ao se validar e revalidar os significados que o sujeito partilha com a comunidade, e que, por sua vez, a comunidade partilha com o sujeito. Assim, sendo um sentido que é, em grande parte, atribuído pelo sujeito, igualmente é validado pela comunidade, a qual necessita que cada sujeito em particular contribua com as suas criações de sentido.
A causação da liberdade, poder e redenção
O tratamento dado à autonomia, enquanto exercício da vontade pelo ser humano, é uma questão central para Rank. Conforme a herança kantiana, Rank concede um papel real à autonomia, papel esse que precisa ser bem compreendido para situarmos o sentido de sua teorização dentro da história do pensamento.
Aqui, é relevante lembrar que, no prefácio de seu livro Aurora, Nietzsche, fazendo uma crítica a Kant, apontou o fato de que ele colocou a moral em um lugar onde ela estaria incólume, dependente de um mundo que seria indemonstrável:
[Kant] para dar lugar a seu “império moral”, viu-se obrigado a acrescentar um mundo indemonstrável, um “para além” lógico — é por isso que teve necessidade de sua crítica da razão pura! Em outras palavras: ele não teria tido necessidade dela, se não houvesse uma coisa que lhe importasse mais que tudo — tornar o “mundo moral” inatacável (…) [Kant] acreditava na moral, não porque fosse demonstrada pela natureza e pela história, mas apesar de ser incessantemente contradita pela natureza e pela história. (Nietzsche, Aurora, pp. 17 – 18).
Porém, essa era uma posição que Kant colocava claramente, pertinente às características do fenômeno e do númeno, ou seja, enquanto que a razão percebe no mundo sensível o que acontece (fenômeno), no mundo inteligível a razão percebe o que deve acontecer, segundo as leis práticas da própria razão, e vai, portanto, se esforçar para que se suceda no mundo tal como a razão estabelece. A razão é, portanto, uma razão legisladora, e a vontade se torna o uso prático dessa razão conforme as leis da liberdade, ou seja, de forma autônoma, e não acionada por objetos do mundo sensível.
Assim, Kant acredita na moral não porque ela seja demonstrada pela natureza e pela história, mas justamente porque não é demonstrável pela natureza e pela história, ou seja, pela experiência sensível. Dessa forma, a vontade, coerente com a razão que necessita se expressar como prática, necessita afirmar o mundo moral dentro do mundo dos fenômenos. A vontade se torna o uso prático da razão, ou seja, a afirmação das escolhas autônomas do ser humano, tornando o mundo empírico, tanto quanto possível, um espaço para a afirmação e concretização desses valores:
Chamo mundo moral, o mundo na medida em que está conforme a todas as leis morais (tal como pode sê-lo, segundo a liberdade dos seres racionais e tal como deve sê-lo, segundo as leis necessárias da moralidade). O mundo é assim pensado apenas como mundo inteligível (…). Neste sentido é, pois, uma simples ideia, embora prática, que pode e deve ter realmente a sua influência no mundo sensível, para o tornar, tanto quanto possível, conforme a essa ideia. (Kant, 2008, p. 653).
Podemos compreender que o mundo moral é realizado não como uma continuidade do mundo exterior dos fenômenos, mas justamente como uma afirmação da vontade interior, ou seja, do númeno, frente aos obstáculos que o mundo exterior oferece à essa expressão. Portanto, se o indivíduo possui a legitimidade de expressar um mundo interior que não é uma extensão do mundo dos fenômenos, mas, ao contrário, é algo que se define como uma oposição à coerção exterior, concluímos que ele possui um espaço de liberdade, que necessita ser levado em consideração igualmente na questão da permanência simbólica. Pode-se ver o quanto as colocações de Rank tornam-se aderentes ao idealismo alemão, iniciado pela filosofia kantiana.
Permanência e poder em Ernest Becker
Podemos dizer que Ernest Becker foi um dos grandes teóricos sobre a destrutividade humana dentro das ciências sociais, enfocando não o aspecto pulsional, concernente a um paradigma médico e biológico, mas sim o aspecto simbólico e cultural. Essa questão se inicia com o fato de que o ser humano é consciente de sua própria finitude, e, assim, possui a consciência da morte.
Essa consciência da finitude entra em choque com a própria capacidade humana de simbolização, na questão de criar a representação de seu próprio fim. O indivíduo se vê, nesse momento, com a tensão de ser, ao mesmo tempo, um ser biológico e um ser simbólico. Surge o desconforto com sua condição de ser um animal finito, mas que, ao mesmo tempo, é um ser que possui uma competência simbólica, e que assim pode construir um mundo de imagens sem limites determinados. Em todas as situações em que ele se vê confrontado com essa realidade paradoxal, ele a percebe como uma contradição e uma ameaça, e, por isso, tende a negar a sua condição finita, necessitando, portanto, negar a sua realidade biológica, e, por conseguinte, a morte.
Além disso, para o indivíduo, a questão não é apenas morrer, mas morrer e ser esquecido, ou seja, ser insignificante na história, não ter importância para um mundo que pode existir sem ele. Como Becker escreveu: “ter importância equivale a ser duradouro, a ter vida” (Becker, p. 35). Assim, seguindo o pensamento de Otto Rank, Becker irá colocar que os sistemas simbólicos existem para erguer o ser humano acima da natureza, de forma que o ser simbólico realize, pelo menos na consciência da vida cotidiana, uma superação do ser biológico. Para permitir isso, essa superação coloca significados necessários de permanência e durabilidade sobre o frágil e falível ser biológico. Com essa finalidade, Becker nos diz que a cultura reveste o indivíduo de um alter-organismo simbólico.
Portanto, os sistemas simbólicos compartilhados, legítimos em relação a um organismo que possui capacidade simbólica, estarão comprometidos também com a tarefa de negar a finitude. Porém, o que poderia ter sido, simplesmente, a sincera construção das representações simbólicas, pertinentes a um ser que possui essa faculdade, irá se tornar em uma falsificação da realidade. É necessário ressaltar que, sendo o outro diferenciado, seus sistemas simbólicos podem ser um desafio à afirmação dos sistemas simbólicos a que o indivíduo atribui legitimidade. Nesse ponto, o outro se torna uma ameaça, pois ele pode afirmar o ser de uma forma diferente ou contrária, concernente a outra cultura ou outra visão de mundo, e assim ameaçar a validade da visão de mundo adotada pelo indivíduo.
A negação da morte terá consequências graves, pois continuamente o indivíduo nega a sua condição de criatura, e se considera como acima das contingências que regem toda criatura enquanto parte do mundo sensível. A partir desse momento, a sua relação com o outro e com a natureza já não poderá ser de compartilhamento e comunhão, pois ele não quer compartilhar o destino de decadência que ele presencia no mundo sensível, e que ele enfatiza na natureza e no outro de forma a esquecer esses aspectos em si próprio. Assim, ele tende a desprezar a natureza, como uma forma de negar a sua natureza biológica, ou seja, natural, valorizando apenas a competência simbólica.
Pode-se considerar que, nas sociedades primitivas, o sentimento de durabilidade era conseguido de forma relativamente inofensiva. Becker menciona John Huizinga, em seu livro Homo Ludens, o qual colocava que, para o homem primitivo, a vida era uma teatralização alegre, cotidiana, do valor de todas as pessoas, protegendo a sensação de valor de cada um junto com a comunidade, sendo “uma dramatização rica e alegre da vida” (Becker, 1992, p. 38). Como não havia nessas sociedades nada que se comparasse ao sistema legal, policial ou militar das sociedades contemporâneas, bastava que se exercesse um desencorajamento, por meio dos costumes, no sentido de que ninguém se tornasse por demais acima da média, e, consequentemente, um indivíduo excessivamente poderoso.
Becker irá associar o advento da grande estratificação social com o aumento da ênfase cultural no indivíduo. A razão disso é que, anteriormente, o ser humano possuía todo o universo como um palco para a afirmação de seu valor, mas, progressivamente, terá apenas o outro para validar ou invalidar a construção de sua própria autoestima. Devemos notar que, na natureza, ele encontrava sempre afirmação, não porque seus elementos (sol, lua, estrelas, floresta etc.) não pudessem falar e contradizer o indivíduo, mas porque tudo na natureza é afirmação do ser. Podemos compreender isso pelo pensamento de Schopenhauer, onde o mundo é a própria vontade se apresentando. Pela leitura de Rank, podemos concluir que os verdadeiros valores humanos são os valores da afirmação do ser. Sendo assim, o homem das sociedades antigas podia se sentir “em casa” no mundo, porém se, e somente se, a capacidade simbólica de sua individualidade estivesse igualmente respaldada.
No entanto, com a crescente divisão social do trabalho ao longo da história, Becker irá colocar que o aumento da assimetria do poder irá acompanhar a escala da construção da desigualdade social. Agora, cada vez se torna mais viável invalidar, desacreditar, desqualificar, ou mesmo destruir, o outro.
Podemos incluir, nesse aspecto, a construção social do bode expiatório, que deve ser sacrificado em prol da segurança da comunidade. Ernest Becker deu continuidade a esse aspecto da obra de Rank acrescentando novas contribuições, e construindo o caminho para o que é hoje a teoria da saliência da morte. Pode-se, assim, verificar a questão da exclusão do outro como uma forma de se realizar uma negação da mortalidade, conforme foi colocado por Otto Rank e depois desenvolvido por Ernest Becker.
Em relação à correta compreensão de Otto Rank, o problema que o entendimento de Becker oferece é a ausência de um espaço de liberdade. Em Rank, esse espaço de liberdade existe enquanto parte da influência de Immanuel Kant. Compreendendo-se Rank como um autor ligado à herança kantiana, e, consequentemente, ao idealismo alemão, verifica-se o quanto a compreensão de muitos aspectos torna-se mais clara dentro desse contexto da história das ideias.
A violência da negação da morte e sua possível superação
Segundo Vaihinger, a partir do texto Verdade e mentira no sentido extramoral, a dúvida radical de Nietzsche tem origem na concepção kantiana de que não se pode conhecer a coisa em si.
Podemos conceber, então, a magnitude dessa dúvida, conforme nos fala Nietzsche, e daremos aqui o seguinte exemplo acerca dessa incerteza sobre a realidade do mundo: supomos que exista, no mundo, um objeto com a cor vermelha. Mas, como o mundo possivelmente não se apresenta aos nossos sentidos como ele realmente é, esse objeto se apresenta aos nossos olhos como sendo amarelo. Por sua vez, nossos sentidos são imperfeitos, e os olhos percebem o objeto como sendo verde. O estímulo nervoso, dos olhos até o cérebro, falseia a percepção do objeto, e a nossa consciência o interpreta como sendo azul. Assim, com toda essa incerteza em relação ao mundo, pensemos agora no relacionamento de duas pessoas, que denominaremos como indivíduo A e indivíduo B. Os dois estão dispostos a fazer desse relacionamento um encontro que possua ética. O indivíduo A, em certo momento, diz: “Eu também tenho dignidade, assim sendo você deve me tratar com respeito”. O indivíduo B poderia argumentar: “Espere, que eu vou buscar no mundo dos fenômenos uma evidência de que isso que você falou é verdadeiro”. Porém, no mundo dos fenômenos só se pode encontrar aquilo que produz uma experiência sensível, o que equivale a dizer que nada se pode encontrar do mundo moral. Com esse vazio, o indivíduo B pode duvidar do indivíduo A, e, assim, desacreditá-lo,
desqualificá-lo, e, consequentemente, tentar destruí-lo.
Em relação a isso, a “blindagem” que Rank coloca a partir de Kant pode nos colocar várias questões. Inicialmente, a devemos entender pela ótica kantiana, onde temos a predominância da razão sobre a coerção exercida pelo mundo sensível. Além de tal concepção fazer pleno sentido dentro do idealismo alemão posterior a Kant, aonde Rank se encontra, temos que o próprio Rank classificou desse modo a sua psicanálise, ao colocá-la como uma afirmação da vontade do indivíduo, apesar dos constrangimentos exteriores contra a expressão dessa vontade.
Nesse ponto, é preciso adicionar a importante questão da sociedade e do indivíduo. O portador da vontade é o indivíduo, ou, no máximo, a comunidade, mas nunca a sociedade. A sociedade procura se legitimar a partir dos restos das ideologias de imortalidade que foram úteis ao indivíduo e à comunidade. Quando Rank escreve sobre a sociedade, nunca é de forma a legitimá-la em um movimento de oposição ao indivíduo, pois o indivíduo está em primeiro lugar, enquanto portador da vontade e da lei moral.
É possível, aqui, sentir a falta de uma colocação mais precisa por parte de Rank, de conceitos semelhantes ao de grupos primários e grupos secundários, tais como expostos por Peter Berger e Thomas Luckmann, ou de socialidade, de Michel Maffesoli, que contemplam os grupos mais imediatamente familiares e amigáveis ao indivíduo, de relações imediatas onde surge o consenso, em contraposição ao sistema socioeconômico—a sociedade propriamente dita. Os grupos próximos são os grupos com os quais o indivíduo pode contar em termos de apoio e proteção, diferenciando-se da sociedade mais ampla. Essa sociedade mais ampla, por sua vez, torna-se cada vez mais estranha e ameaçadora ao indivíduo, e assim toma os contornos do conceito de sistema socioeconômico. Nesse ponto, Rank deixa claro o quanto ele considerava que a terapia não poderia, ao mesmo tempo, estar do lado do paciente e do lado da sociedade.
A sociedade, colocada como os grupos formais e impessoais, se constitui em uma força de conformação da pessoa e de anulação da individualidade. Temos que o indivíduo necessita expressar a si mesmo com a ajuda da cultura da comunidade, mas apesar da normatividade da sociedade. Assim, poderíamos colocar que a cultura da comunidade, sendo uma expressão da vontade, favorece a expressão do indivíduo, mas a grande sociedade, assumindo uma posição legalista, quer colocar ao indivíduo limitações que não se apoiam na lei moral, mas, como o próprio Rank coloca, se apoia em uma lei já instrumentalizada pelos grupos no poder.
Torna-se viável conceber que Rank reconhece a sociedade como o conceito de Vaihinger de uma aparência conscientemente intencionada, a partir da necessidade de se afirmar uma ordem mesmo se tendo consciência que essa ordem é de natureza ficcional.
Assim, pode-se concluir de Rank que ele assume que a sociedade não tem razão, mas isso não em relação a alguma sociedade em particular, de algum local ou de alguma época, em oposição a uma outra sociedade que teria razão; por exemplo, Rank não nos autoriza a supor que uma sociedade socialista teria razão.
Torna-se claro que, em Rank, a vontade se apresenta ao mundo não por meio da sociedade, mas por meio do indivíduo, na medida em que este se expressa e é capaz de exercer essa vontade.
Rank coloca a oposição do indivíduo e da sociedade nos seguintes termos:
For against this parent-like representative of the social will is aroused the self will of the weakest patient although it is interpreted by the Freudian therapist as resistance on the basis of his own will and in terms of his own moral and social ideals; that is, something that must be overcome or even broken instead of being furthered and developed. (…) Individual therapy degenerates into a mass education which is based on the traditional world view and the Jewish-Christian morality. (Rank, 1978, pp. 22 – 23).[1]
Vemos que o paciente está em uma posição de vulnerabilidade social, e, além disso, frente a uma vontade exercida por uma sociedade, que está situada historicamente dentro de uma tradição cultural específica (neste caso, judaico-cristã, mas poderia ser qualquer outra), e representada pelo terapeuta. Rank considerava que aqui se repetia o pessimismo inicial perante a vontade, ou seja, ela é “má”, “inadequada”, “imoral” etc. Naquele contexto histórico, na medida em que Freud considerava que os homens deveriam viver debaixo de uma “ditadura da razão”, isso não estaria longe da verdade.
O problema com essa “ditadura da razão”, contrária à vontade, é que ela seria heterônoma, vinda das coerções exteriores, que precisariam controlar a vida pulsional. Porém, a moralidade kantiana necessita da autonomia do sujeito, justamente porque essa autonomia é a capacidade da vontade de determinar-se pela razão, o que equivale a dizer, pelo mundo moral, e assim fazendo, escolher, de forma autônoma, seguir o dever em vez de seguir as inclinações. Mas, o ponto central em se propor uma “ditadura da razão” é justamente se considerar que a verdade está em uma instância fora do indivíduo. Se essa instância é a sociedade tal como ela se apresenta hoje, ou como será no futuro, não importa tanto quanto ser uma desqualificação do indivíduo frente a poderes exteriores que, presumivelmente, possuem a razão, e têm, assim, o direito de submeter o indivíduo.
Portanto, pode-se dizer que a valorização do indivíduo em Rank deve ser entendida enquanto a afirmação de que a vontade se expressa, por excelência, por meio do indivíduo, e não por meio da sociedade.
Somado a isso, temos que, pela influência de Schopenhauer, a vontade é a força da natureza no indivíduo, sendo a própria manifestação do ser do universo. Mas, além disso, Schopenhauer nos coloca que a vontade, no ser humano, é o fundamento da ética:
A partir desse ponto de vista, é inegável que um sistema que coloque a realidade de toda a existência e a raiz do conjunto da natureza na vontade, detectando nesta o coração do universo, terá uma grande vantagem a seu favor. Pois ele atinge, trilhando um caminho reto e simples, e até mesmo já tem em mãos, antes de partir à ética, aquilo que os outros buscam atingir somente com desvios longos e sempre enganosos. De fato, esse objetivo é verdadeiramente inatingível, senão por meio da noção de que a força que dirige a age na natureza, que apresenta este mundo intuitivo ao nosso intelecto, é idêntica à vontade em nós. Apenas aquela metafísica que já é ela mesma originalmente ética, sendo construída a partir de seu próprio material, a vontade, é o suporte efetivo e imediato da ética (…). (Schopenhauer, 2013, pp. 209 – 210).
Nesse sentido, existe uma grande mudança, pois a ética, e, consequentemente, a razão, se encontram no indivíduo. Portanto, decorre que é mais seguro confiar no indivíduo do que confiar nas estruturas sociais. A partir daqui podemos compreender a lei moral, como mencionada por Rank no livro Beyond Psychology, em oposição à lei social, que é, segundo Rank, instrumentalizada pelos grupos no poder. Portanto, a lei moral é “a expressão de nosso eu moral”, e como tal não precisa ser imposta do exterior, é auto imposta visando à preservação da pessoa, tanto no aspecto físico como na competência simbólica, e se faz presente na cultura da comunidade; ou seja, é pertinente às relações face a face, relações próximas onde surge o consenso. Diferentemente dela, a lei social estará ligada à estratificação social e à assimetria do poder, e será imposta ao indivíduo a partir de grupos externos: “For the moral law from the beginning was common, that is, popular law, whereas social law was dictated by the group in power. ” (“Porque a lei moral desde o início era comum, ou seja, do povo, enquanto a lei social era ditada pelo grupo no poder. ”). (Rank, 1958, p. 146, tradução nossa).
Sociedade, heteronomia e autonomia
Temos, portanto, que o expoente da lei moral é o indivíduo. É nele que se apresenta a vontade, e, se expressando como organismo, necessita se preservar. Se preserva não apenas no aspecto físico, mas também no aspecto simbólico.
A questão que Rank nos apresenta é que, embora o indivíduo encontre na cultura um espaço acolhedor para o seu projeto de se desenvolver e de se expressar, a sociedade, enquanto grupo secundário e afastado do indivíduo, se mostra como hostil, pelo fato de que a sociedade não quer a expressão criativa, ela quer a conformidade. É contra ela que o artista, isto é, o indivíduo criativo, que afirma sua diferença de forma produtiva e construtiva, irá travar a sua luta mais dura.
Portanto, pode-se afirmar que a sociedade não é um reflexo da lei moral. Na verdade, os fatores que negam a autonomia do indivíduo, como a necessidade de se afirmar alguns grupos em detrimento de outros, a produção de bodes expiatórios, e o heroísmo que precisa ser feito contra alguém, possuem como agente a assimetria de poder condicionada pela estratificação social que, segundo Becker, acompanhou o surgimento das sociedades mais complexas e suas estruturas sociais. Igualmente, as sociedades primitivas, pouco estruturadas em termos de organização política, tinham mecanismos para impedir que alguma pessoa ou grupo acumulasse uma grande quantidade de poder. Se a assimetria não é realizada, menores são as condições de que um indivíduo possa querer afirmar a sua potência no mundo por meio da destruição de outro. Nas sociedades contemporâneas, altamente estratificadas, ocorre o oposto.
Além disso, Rank parece somar a esse quadro o ceticismo de Nietzsche ao afirmar que as pretensas verdades são no máximo metáforas, analogias, metonímias etc. Embora o aspecto pragmático do primeiro Nietzsche poderia ver nisso o valor de uma afirmação da potência, essa afirmação só poderia ser feita a partir do indivíduo, na medida em que o organismo que expressa a potência necessariamente é o indivíduo. Então, na medida em que qualquer narrativa precisa acreditar na permanência, e, consequentemente, no ser, esse ser que necessita ser imaginado está mais próximo do indivíduo, o qual manifesta a potência pela sua própria condição de organismo que possui vida.
Mas, se formos afirmar que a lei moral é, por excelência, do indivíduo, parecemos tirar da sociedade aquilo que seria a maior legitimação de seu valor, ou seja, de ser o espaço de uma lei que se impõe ao indivíduo, e que, supostamente, seria moralmente legítima. Podemos observar que Kant realmente pensava dessa forma em termos da sociedade civil, que teria como organização ideal a república, como a forma dos seres humanos, enquanto seres dotados de racionalidade, se organizarem entre si de forma construtiva (Kant, 2012, p. 100). Da mesma forma, o ordenamento social precisava seguir uma razão reconhecida por todas as consciências, onde se tornava autônomo, e, portanto, moral, na medida em que era aceito pela liberdade da vontade de seres que possuem o uso da razão, em prol do bem comum:
Tal como Hobbes afirma, o estado de natureza é um estado de violência e de prepotência e devemos necessariamente abandoná-lo para nos submetermos à coação das leis, que não limita a nossa liberdade senão para que possa conciliar-se com a liberdade de qualquer outro e, desse modo, com o bem comum. … isto resulta do direito originário da razão humana de não conhecer nenhum outro juiz senão a própria razão humana universal, onde cada um tem a sua voz; e porque desta deve vir todo o aperfeiçoamento de que o nosso estado é susceptível … (Kant, 2009, pp. 616 – 617).
Lei moral, ficção e verdade
Kant estabeleceu que, no mundo dos fenômenos, não podemos ter contato com a coisa em si, mas, quando a razão está sozinha consigo própria no momento de se perguntar “como devo agir? ”, ela tem contato direto com o mundo inteligível, que se torna, para os fins práticos da razão, o mundo moral. Para esses fins práticos, o contato com a lei moral tem mais realidade do que o contato com o fenômeno.
Assim, a lei moral, conforme Kant, não é ilusão. Lembremos que, mesmo que ela seja determinada por algo que não produz experiência sensível, pensar sobre isso produziria apenas especulação, já que não é possível o dado empírico, e dessa forma seria inútil. Assim, vemos que esse seria o momento em que a razão pura, esta sim, produziria ilusões, tal como, no passado, produziu as antigas metafísicas.
Essa abordagem kantiana está no contexto do pensamento de Rank, e percebemos que sua obra ganha um sentido mais completo. Analisemos, em relação a isso, este pequeno trecho de seu livro Psychology and the soul:
The human psychological universal that has been passed down is after all the soul, our soul-belief – the old psychology we believe in at heart but keep out of mind in modern psychology.
This interpretation accords with the ethnological finding that unlike people with a “modern” world view, “primitives” are oriented towards a spiritual world, not one of reality. The laws of causality play a minor role in primitive mentality; the major role is played by all manner of celestial and supernatural forces that are not part of nature but are projected from self onto nature. As we have become more realistic, we have buried the soul deeper and deeper within, because there was no place for it in the external world. Unlike us, the first people acknowledged the soul, believed in it consciously, and filled the world with that soul-belief. They made the world less real, more like the self. (Rank, 1988, p. 8).[2]
De que forma um mundo “menos real” é mais fiel ao self? Podemos dizer que é assim na medida em que, principalmente no que diz respeito às escolhas do ser humano no mundo, essa realidade externa é igualmente constituída de metáforas, analogias e metonímias, e isso é ainda mais significativo na medida em que essas metáforas, analogias e metonímias produzem estratificação social, exclusão e bodes expiatórios. Na medida em que a realidade está à serviço do empoderamento de uns e do desempoderamento de muitos, ela cumpre uma função na assimetria do poder, e assim, pelo menos em termos morais, ela não é objetiva, “científica” ou neutra. Ela é ficcional e está orientada para cumprir o papel de vitimizar os que foram eleitos, pelo grupo hegemônico, para serem os párias.
A partir dos questionamentos do Nietzsche da primeira fase, Rank assume que não existe uma “realidade” em oposição completa a uma “ilusão”. O que se considera como realidade também é uma construção humana, além de ser o material que vai se definir como aquilo que se deixa conhecer como sendo o obstáculo à expressão do ser (a “realidade”). Somado a isso, temos o elemento da produção da assimetria, onde aquele grupo que se considera “especial” precisa desqualificar os outros grupos, e, frequentemente, irá procurar destruir esses não-eleitos.
De forma a assegurar que estas colocações sejam práticas, tais como colocadas pela filosofia moral kantiana, nós estamos restringindo estas considerações ao âmbito das escolhas humanas, na medida em que elas se dão a partir de um ser que está consciente de que possui o uso da razão, e o exercício da razão é o uso prático da liberdade no mundo.
Com tudo isso, a realidade, no aspecto das escolhas humanas, será a ilusão do grupo no poder que é imposta ao restante da sociedade. Dessa forma,
faz muito mais sentido para o indivíduo seguir a lei moral que a sua razão descortina dentro de si. Essa lei moral, igualmente, se constitui de escolhas que não podem ser verificadas no mundo empírico, porém se colocam como uma afirmação dos valores da pessoa, que, a partir desse momento, são estendidas ao mundo, de forma que o mundo esteja preenchido por um sentido humano; como nos disse Rank, projetadas do self para o mundo.
Igualmente, é viável afirmar que a melhor denominação para essa certeza interior, em Rank, seria como uma ficção, conforme o sentido de Vaihinger. Torna-se uma afirmação dos valores do indivíduo, e não uma afirmação dos valores do sistema político, do sistema econômico etc. Por isso, deve-se considerar que existe mais coerência no fato de a pessoa viver pela sua ficção do que morrer pela ficção do sistema socioeconômico; por exemplo, nas guerras.
Porém, Rank só pôde firmar essa posição na medida em que pensou o indivíduo como tendo um espaço interior de liberdade, que nós podemos entender como derivado da filosofia moral de Kant. Se não fosse por isso, as determinações que movem a sociedade, entendidas enquanto o sistema socioeconômico, também moveriam o indivíduo, que, nesse paradigma, não teria nem autonomia nem liberdade.
Esse espaço interior da vontade e da ética, possibilitado por uma razão que, em seu aspecto prático, é autônoma, possibilita que os valores do self estejam presentes no mundo, e, dessa forma, é realizada a afirmação do sentido humano no mundo:
In a word, we encounter here for the first time the actual ground of psychology, the realm of willing and ethics in the purely psychic, not in the biological or [social] moral sense, therefore not in terms of any supra-individual force, but of freedom as Kant understood it metaphysically, that is, beyond external influences. (Rank, 1978, p. 71).[3]
Referências
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KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Ícone, 2014.
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NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1985.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A., 1995, 8ª edição.
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
NIETZSCHE, F. (2013). Escritos sobre psicologia. Rio de Janeiro: Editora da
PUC-RIO, 2013.
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SCHOPENHAUER, A. O Mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
SCHOPENHAUER, A. (2013). Sobre a vontade na natureza. Porto Alegre: L&PM Editores, 2013.
SCHOPENHAUER, A. (2014). Sobre a ética: parerga e paralipomena (v. II, t. II). São Paulo: Editora Hedra, 2014.
VAIHINGER, H. A filosofia do como se. Chapecó: Argos Editora, 2011.
[1] Contra esta representação paternal da vontade social se encontra a vontade individual do paciente vulnerável, porém essa vontade é interpretada pelo terapeuta freudiano como resistência,
fundamentando-se em sua própria vontade e nos termos de seus próprios ideais morais e sociais; ou seja, como algo que precisa ser superado e mesmo rompido, em vez de ser apoiado e desenvolvido. (…) A terapia individual se degenera em uma educação de massa, fundamentada na visão de mundo tradicional e na moralidade judaico-cristã. (Rank, 1978, pp. 22—23).
[2] O componente universal humano herdado ao longo do tempo é, afinal, a alma, nossa crença na alma – a ancestral psicologia em que, de forma profunda, nós acreditamos, mas mantemos fora do debate na psicologia moderna.
Esta interpretação se coaduna com o achado etnológica de que, diferentemente de povos com uma visão de mundo “moderna”, os “primitivos” são mais orientados na direção de um mundo espiritual, não um mundo de realidade. As leis da causalidade possuem um papel menor na mentalidade primitiva; o papel principal é atuado por toda sorte de forças celestiais e sobrenaturais que não são parte da natureza, mas são projetadas do self para a natureza. Na medida em que nós nos tornamos mais realistas, nós acobertamos a alma de forma mais e mais profunda em nosso interior, pois não havia lugar para ela no mundo exterior. Diferentemente de nós, os povos antigos não negavam a alma, mas acreditavam nela conscientemente, e preencheram o mundo com essa crença na alma. Fizeram o mundo menos real, e mais de acordo com o self. (Rank, 1988, p. 8, tradução nossa).
[3] Em uma palavra, encontramos aqui pela primeira vez a verdadeira base da psicologia, o âmbito da vontade e da ética no sentido puramente psíquico, e não no sentido biológico ou moral [social], portanto não em termos de uma força supra individual, mas de liberdade como Kant a entendeu metafisicamente, ou seja, livre de influências exteriores. (Rank, 1978, p. 71, tradução nossa).
O valor da filosofia na psicanálise de Otto Rank
Julio R. Costa
1. Introdução
Entre os primeiros psicanalistas que, juntamente com Freud, formavam a Sociedade Psicanalítica de Viena, Otto Rank se destacava por, juntamente com Hanns Sachs, não ser originário do campo da medicina. Sachs era advogado, porém Otto Rank, tendo um doutorado em filosofia, se tornará em um caso à parte enquanto psicanalista. Depois de seu abandono das posições de Freud, tanto em relação à teoria como à prática clínica, o seu trabalho requer uma análise aprofundada, de modo ser fiel ao seu legado, o qual já tem obtido reconhecimento por diversos autores.
Tendo em consideração o perfil único de Otto Rank na Sociedade Psicanalítica de Viena, ocasionado pelo teor filosófico de sua obra, procura-se, neste artigo, tentar esclarecer o decisivo impacto de Nietzsche, Schopenhauer e Kant em sua obra, e como isso pode tornar compreensível as posições de Rank no contexto da história do pensamento.
Portanto, para além dos fundamentos fornecidos por Freud, veremos que é viável se dizer que, em sua obra, Otto Rank:
- Aceitou o caráter ficcional das construções humanas, a partir de Nietzsche;
- A partir de Schopenhauer, adotou a vontade como o fundamento do mundo, e, igualmente, como o fundamento do contato do ser humano com o mundo;
- Com Kant, considerou o númeno como o lugar do ser, de tal forma que as ideologias, bem como suas estruturas sociais, estão condenadas ao fracasso a longo prazo, enquanto o ser do humano está alocado no númeno de Kant, e, assim, é portador de um valor que não pode jamais ser desacreditado.
- Uma visão geral da teoria de Otto Rank
2. Uma Visão Geral de Sua Teoria
Otto Rank considerava que o impulso criativo no indivíduo, que tem como seu fundamento a vontade, é a base de um processo em que a pessoa se torna mais e mais única e diferenciada. Esse desenvolvimento se desdobra na história de vida do indivíduo, na medida em que ele luta, conquista, cria, e interage com seus iguais. Nesse processo, o indivíduo se torna um agente de afirmação, que aprende, recria e renova os valores da comunidade. Nesse processo, o desenvolvimento da vontade e da progressiva individuação se dará no sentido de tornar o indivíduo, tanto quanto permitirem as limitações humanas, no criador de sua personalidade, e, simbolicamente, no criador de si próprio. Isso implica a intenção do indivíduo, enquanto agente que expressa a vontade, em se perpetuar, o que é impossibilitado fisicamente pela morte. Essa perpetuação será, portanto, buscada por meios simbólicos durante a vida e para além dela, no contexto de sua interação na comunidade, independentemente da falência das sucessivas ideologias pertinentes aos diversos contextos sociais e históricos.
Esses grandes sistemas de crença, denominados por Otto Rank de ideologias, são ligados a contextos históricos, e, com o passar do tempo, inevitavelmente perdem sua eficácia e são descartados. Porém, o término de cada ideologia não ocasiona dano ao ser da pessoa humana, na medida em que Rank, influenciado pela epistemologia e pela ética de Kant, posicionou o ser no âmbito do númeno, o que será abordado ao longo deste artigo.
É relevante assinalar que o maior reconhecimento da obra de Otto Rank em tempos relativamente recentes foi feito pelo antropólogo Ernest Becker, em seu livro A negação da morte (1972). Becker descreve as construções culturais necessárias para que o indivíduo possa confrontar sua condição de finitude, tendo em vista, especialmente, a morte. Assim, de modo a superar o medo incapacitante que surge da própria conscientização sobre a contingência do existir, a pessoa humana, em sua interação com os outros, constrói mecanismos que irão preservar e estimular a sua autoestima e a habilidade de efetiva interação no meio social. Porém, a visão de Becker postula um caráter consolador dos elementos culturais, enquanto negação e autoengano. Por outro lado, pode-se observar na obra de Rank a afirmação positiva da vontade e do sentido. Neste artigo, se focará o aspecto positivo, entendido como afirmação da vida, que pode, em termos do saber filosófico, ser apreendido a partir da primazia da vontade, do aspecto ficcional das construções humanas, e do ser do indivíduo como parte do númeno kantiano.
Pode-se observar o quanto é relevante que, na psicanálise de Otto Rank, esses aspectos afirmativos tomem o lugar do autoengano, instaurando, assim, uma afirmação da vida e do sentido, a qual irá se refletir sobre a ética e a dignidade humana no interior de sua obra.
3. A Cultura e o Ser
É importante ressaltar o fato de que, quando Rank descrevia diferentes culturas ou mencionava as diversas religiões e sistemas simbólicos de diversos povos, ele mantinha grande respeito com todas essas construções culturais, nunca as desacreditando ou usando o recurso da ironia. Quando falava de diferentes culturas, fossem ocidentais ou de uma tradição completamente diferente, nunca as desacreditava, como poderia ser o caso de alguém que as observasse em contraposição ao que seria a moderna racionalidade ocidental.
A leitura de Rank nos revela um intelectual estoico e melancólico, que analisava a expressão heroica da vontade no âmago da pessoa, no ser. Em contraste, observamos a fragilidade da expressão social desse mesmo ser ao longo da história, devido à natureza ficcional das construções sociais em face da vontade que se manifesta no indivíduo – a qual é o próprio fundamento da vida.
Otto Rank apreendeu de Nietzsche a questão da natureza ficcional das construções humanas, enquanto que a vontade, como fundamento do ser, é derivada de Schopenhauer. A sentença de Kant, “determina-te a ti próprio por ti próprio”, proporciona o criticismo ético na teoria de Otto Rank, resguardando essa ética do ceticismo de Nietzsche e do pessimismo de Schopenhauer, ao mesmo tempo em que mantém o aspecto de crítica e questionamento da visão desses autores.
De acordo com Rank, necessitamos compreender que o ser humano necessita expressar o seu ser, na qualidade de um ser de valor único, e, igualmente, capaz de interação com os outros e integração com a comunidade. Sendo assim, é de fundamental importância que esse projeto de ser mais garanta a perpetuação dos valores da pessoa, os quais permitem a própria expressão de sua subjetividade no mundo. Deve-se ressaltar que se está buscando, principalmente, os valores da subjetividade e de sua dignidade, em um grau de abstração que nos irá remeter ao númeno kantiano.
Assim, o que se torna um problema para o ser é a fragilidade e falta de fundamentação das construções sociais de perpetuação da subjetividade, as quais Rank denomina de ideologias. Embora igualmente compartilhadas pelo indivíduo, são muito aderentes às estruturas sociais estabelecidas. Pelo fato de essas estruturas serem impessoais, em algum momento irão se tornar ineficazes para promover a perpetuação simbólica do sujeito. Observamos, então, que a simbologia que era pertinente a determinada cultura, que proporcionava a afirmação e expansão do ser (aqui entendido como a pessoa), teve de ser substituída.
4. Do dogmatismo ao criticismo, por via do ceticismo e do pragmatismo
À parte de determinadas influências provenientes de Schopenhauer, não existe metafísica em Otto Rank. Porém, o que mais facilmente pode ser percebido de Rank é a questão de seu afastamento de Freud, principalmente em relação ao materialismo que Freud representava. Na verdade, esse era o grande valor de Freud em relação a antigas visões dogmáticas e pseudocientíficas sobre o ser humano.
Como salientado por E. James Lieberman, o sucesso de Freud estava na criação de um sistema de investigação e compreensão que rompeu com as antigas ideias religiosas ou sobrenaturais, ou seja, com o dogmatismo:
Freud – ateu, neurologista e ex-hipnoterapeuta – foi pioneiro em uma psicologia sem espiritualismo ou metafísica, de modo a ser compatível com os requerimentos do novo materialismo científico, e considerou a religião como uma ilusão sem futuro. Rank respeitava a religião fosse ilusão ou não. (Lieberman in Rank, 1998, xviii).
Neste ponto, é necessária a compreensão de como e porque Rank respeitava os elementos da cultura “fossem ilusões ou não”. Vemos que a psicanálise expressou uma evolução do dogmatismo tradicional para o ceticismo, coerente com a atitude científica e racional de Freud, a qual era uma conquista no contexto da história da ciência.
O fato é que, de modo a ser consistente com a sua posição, Freud teve de desacreditar os códigos simbólicos tradicionais, considerando-os, assim, como sendo uma ilusão. A posição que Rank iria tomar, consistente com o seu respeito pela cultura, “fosse uma ilusão ou não”, seria partir do ceticismo rumo ao pragmatismo, e daí para o criticismo. Nesse processo, o ceticismo poderia ser representado pela posição de Freud, que o jovem Rank havia apoiado entusiasticamente; o pragmatismo, por outro lado, iria ser trazido por Nietzsche. Finalmente, teremos o criticismo de Kant – aonde podemos encontrar as raízes do que podemos considerar como uma ética presente em Otto Rank.
Comecemos observando o pragmatismo. Pode-se dizer que assumimos como verdadeiro tudo aquilo que é relevante ser conhecido. A verdade é vista como uma concordância entre o ser e o pensar. Às vezes, porém, essa afirmação tem sido questionada. Isso ocorreu quando a questão do pragmatismo filosófico (que se originou do ceticismo), com sua ênfase no que é útil, foi colocada. Na citação de Lieberman, a ideia do pragmatismo é clara: seja ou não uma ilusão, a religião é útil na sociedade humana. Essa era a atitude compartilhada por Rank, e para ele as raízes dessa ideia do valor da utilidade estavam fundamentalmente em Nietzsche. Além de Nietzsche, podemos citar, como representantes do pragmatismo, Schiller e Vaihinger na filosofia, e William James, na psicologia.
Portanto, como seria o pragmatismo de Nietzsche? Torna-se necessário enfatizar um ponto: de acordo com Nietzsche, a concordância entre o ser e o pensar jamais pode ser conseguida, devido à historicidade humana. A consciência seria o “órgão” menos desenvolvido no ser humano. Para os seres vivos, que necessitam agir para afirmarem a si próprios no mundo, a força principal não é a inteligência, mas a vontade de potência.
Assim sendo, o ser humano é um ser que necessita agir; apenas de modo a agir melhor ele precisa pensar. Dessa forma, um juízo derivado do pensamento se torna verdadeiro no grau em que conserva, estimula e expande a vida. Assim temos o parâmetro da validade de um juízo – sua utilidade prática. De acordo com Nietzsche, o que necessitamos avaliar é se determinado juízo está ou não a serviço da vontade de potência, ou seja, da expansão da vida.
Podemos observar que Rank interiorizou plenamente o ponto de vista do pragmatismo. Assim, os conteúdos da cultura não necessitam ter a sua validade confirmada per se, devido ao fato de que o importante é a sua utilidade em prover a pessoa de um sistema simbólico de perpetuação, como um fundamento para o ser mais, em termos amplos.
No entanto, Rank não se detém no pragmatismo. Sendo necessário garantir a expansão do ser, se torna natural a pergunta: de que ser estamos falando, visto que se considera impossível a metafísica? Neste ponto, temos o espaço devido para o criticismo de Kant.
Na trajetória de seu pensamento, Kant também experienciou a passagem do dogmatismo para ceticismo, principalmente devido ao pensamento de Hume, dentro do empirismo inglês. Kant concordou com Hume em relação à contingência do conhecimento, da qual se infere que nunca houve e nunca poderá haver uma metafísica, porém, considerou as consequências éticas do ceticismo como sendo inaceitáveis. Na verdade, todo o idealismo alemão (aonde Kant se incluía) se encontrou engajado em defender a razão contra a dúvida e o relativismo do empirismo inglês. Kant, especificamente, se viu na posição de defender a razão contra o ceticismo, e esse ponto é muito importante para a nossa compreensão de Rank. Kant definia isso como uma crítica da própria possibilidade do conhecimento, na medida em que as ilusões especulativas, características do dogmatismo, precisam ser evitadas, juntamente com a redução de tudo à experiência, no caso do ceticismo.
Será importante se retornar ao pragmatismo de modo a se observar o quanto de Kant pode ser encontrado em Nietzsche, precisamente em relação à possibilidade do conhecimento.
5. Conhecimento e ficção
O pragmatismo de Nietzsche teve o seu foco na vida a ser imediatamente vivida; era o espaço sem o infinito e o tempo sem a eternidade. Era um abandono da metafísica de Schopenhauer, a quem Nietzsche em sua juventude se referia como, “meu mestre”. Assim, em seus primeiros trabalhos, tais como Verdade e mentira no sentido extra moral, o jovem Nietzsche formula a questão, “o que nós podemos saber com certeza acerca do mundo, e em que medida nós sabemos realmente sobre o mundo? ”.
A dúvida de Nietzsche era bastante abrangente: como podemos ter certeza de que o mundo se revela aos nossos sentidos como ele realmente é? Nós não estamos nos perguntando neste momento se os nossos sentidos são capazes de perceber corretamente o mundo, mas se o mundo, em si, se revela aos nossos sentidos de forma verdadeira, como ele realmente é. Além disso, deve-se levar em consideração que o mundo ocasiona um estímulo nervoso em nossos sentidos, o qual não necessariamente será fiel ao estímulo exterior; essa excitação nervosa irá disparar um pensamento no cérebro, e nós não sabemos o quanto esse pensamento será fiel ao estímulo nervoso. E não sabemos o quanto a palavra, que expressa o pensamento, será fiel ao pensamento.
Com base nessas perspectivas, pode-se dizer que apenas se tem aproximações, ou, na crítica de Nietzsche, ilusões compartilhadas coletivamente. Como ele escreveu:
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transportadas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não como moedas. (Nietzsche, 2014, P. 66.).
O que será importante para a nossa compreensão do pragmatismo e de Rank será o quanto essa dúvida sobre a capacidade de conhecer irá minar os fundamentos de qualquer sistema que se pretenda absoluto, com ênfase na esfera moral e social. Porém Nietzsche irá, por essa via, desacreditar não apenas os sistemas sociais, mas igualmente a própria pessoa, na medida em que a consciência de si é extremamente débil em relação às forças da natureza, além de suas construções não terem fundamento. Quando Nietzsche nos diz que não devemos ter nenhum egoísmo, isso é porque aquilo que nossa consciência considera importante para nós é um nada perante o que as forças da vida e da natureza estejam, digamos assim, planejando para nós, e nossa vontade – a vontade do cultivo do nosso “eu” ficcional – não pesará em nada em relação ao fluxo dos acontecimentos. Mas igualmente, Nietzsche nos lembra, não devemos sair do egoísmo para o altruísmo, pois a vontade do outro igualmente não terá poder nenhum diante do grande esquema das coisas, diante do que a vida reservou para ele, sem levar em consideração, em nenhum momento, a fabulação que é sua pretensa autoconsciência.
Veremos, no decorrer deste artigo, por quais razões Rank irá aceitar de Nietzsche a crítica ao fundamento absoluto dos sistemas sociais, mas não irá aceitar a crítica à consciência e ao ser da pessoa.
6. O a priori humano e o númeno
Foi Hans Vaihinger que nos assegurou que “há mais Kant em Nietzsche do que normalmente se imagina”. Em sua visão, isso se daria por aquela dúvida radical em relação à capacidade de se conhecer o mundo. Essa dúvida, segundo Vaihinger, teria sua origem na Crítica da razão pura, de Immanuel Kant, onde se coloca a questão do fenômeno e da coisa em si.
Na Crítica da razão pura, Kant irá analisar a possibilidade do conhecimento, e, vendo o conhecimento como contingente ao a priori do ser humano, irá contestar a possibilidade da metafísica, no sentido de um conhecimento sobre Deus, o mundo e a alma. Pelas conclusões desse livro, ele será denominado de “destruidor”, pois as pessoas fundamentavam sua crença nesse conhecimento, ao ponto do rei Frederico II proibir Kant de comentar e escrever sobre seu livro A religião nos limites da simples razão por dois anos. Deve-se compreender que Kant era um filósofo do Iluminismo, e como tal almejava ir contra todo o dogmatismo.
Precisamos, porém, compreender como ele tencionava proteger a razão contra o ceticismo justamente com alguma coisa que poderia dar respaldo ao ceticismo. A resposta está em livro posterior, Crítica da razão prática, onde ele irá colocar os fundamentos da moral, apresentando o criticismo como uma alternativa ao dogmatismo, e, igualmente, ao ceticismo.
Kant procurava uma ética que poderia ser alcançada por um homem do Iluminismo, onde os determinantes dogmáticos da moral, de base sobrenatural, deveriam ser substituídos por categorias que pudessem ser argumentadas racionalmente.
A chamada “revolução copernicana” de Kant foi justamente colocar a razão do sujeito como determinante do conhecimento do objeto. É a capacidade de conhecer do sujeito que determina o objeto. Veremos como será extremamente importante o fato de que a razão não mais se dobra perante seu objeto de conhecimento, e, em todos os momentos, irá permanecer fiel às suas próprias leis, ser coerente consigo própria. A razão torna-se uma razão legisladora. Não era assim quando o objeto era o determinante do sujeito, e do ato de conhecer do sujeito.
Esse desenvolvimento foi necessário para Kant devido ao fracasso do dogmatismo em conhecer a realidade, principalmente por meio das tentativas de metafísica implícitas em seu bojo. Deve-se enfatizar aqui que se almejava conhecer de uma forma que pudesse ser tão efetiva e verificável quanto o conhecimento proveniente da lógica e da matemática. Assim, tornou-se necessário para Kant estudar a própria faculdade da razão, conhecer a sua interioridade, as suas regras e limites.
Kant colocou que sempre se interroga a natureza por meio das exigências que já estão contidas na razão humana, ou seja, nas formas a priori do conhecimento. O ser humano conhece o real por essas formas, que existem a priori na razão, e que a sua capacidade de conhecer coloca sobre os dados da experiência sensível. Todo o real, portanto, é fruto de uma construção humana a partir da experiência sensível submetida às formas a priori da razão pura. Aquilo que está para além do alcance da razão é a coisa em si, a realidade última, que o ser humano não tem como conhecer, mas pode pensar por meio de símbolos.
Kant se diferencia do pensamento metafísico pelo fato de que o sujeito e a subjetividade não irão ter uma “substância”, mas haverá a consciência de si que acompanha todo ato cognitivo e toda experiência consciente. Esses atos cognitivos estão estabelecidos por limites que delineiam a experiência dos fenômenos, pois é impossível para a consciência falar daquilo que está além dos fenômenos (a coisa em si). Mas essa consciência de si precisa ser pressuposta, devido ao fato de não ser possível haver uma “consciência da consciência”. Considerando que não temos experiência imediata dos objetos dos sentidos, mas apenas chegamos a ele por intermédio das representações, as quais são fornecidas pelas possibilidades já contidas na razão, temos que a consciência dos objetos não tem uma dignidade maior ou menor que a consciência de si, pois elas são concomitantes.
Observe-se que o que pode ser conhecido é o fenômeno, o mundo dos fenômenos que se apresentam imediatamente ao ser humano. Eles podem ser conhecidos e pensados. O mundo das determinações morais não é objeto da experiência sensorial, e pode ser apenas pensado. É o mundo do númeno, distinto do fenômeno. Assim, os fenômenos estão no mundo sensível, e o númeno se encontra no mundo inteligível, que é suprassensível. Porém – e isto era muito importante para Kant – o mundo suprassensível não era metafísico ou sobrenatural, é um mundo que pode ser apenas concebido por meio de símbolos que a razão necessita postular. Ele é necessário no âmbito da ação prática, em concordância com a razão. Essa ação se torna, portanto, ação moral.
É digno de nota que, na concepção desse mundo inteligível, que é “compreensível apenas em termos morais”, e onde todas as determinações são morais, Kant segue a antiga teoria de Platão do mundo das ideias (Kant, 2012, p. 107). Kant nos diz:
Como tratamos (ou julgamos) aqui meramente de ideias que a própria razão cria para si, cujos objetos (se é que existem) residem muito longe do nosso horizonte, e como, ainda que seja preciso considerá-las vãs para o conhecimento especulativo, não precisam, por isso, serem vazias em todos os sentidos, mas a própria razão legisladora coloca-as dentro do nosso alcance com propósito prático, não para que nos ponhamos a refletir sobre seus objetos, sobre o que sejam em si e segundo sua natureza, mas para que os pensemos em proveito dos princípios morais, direcionados ao fim último de todas as coisas (pelo que, essas ideias, que de outro modo seriam absolutamente vazias, recebem realidade prática objetiva). (Kant, 2012, p.112).
Rank nos diz que o ser humano é um “ser teológico”, sem nunca discorrer sobre Deus, mas sobre as considerações da cultura em relação à ideia de Deus como um suporte para a perpetuação da pessoa. Poderíamos conceber que Rank se utiliza desses conceitos ao modo dos princípios reguladores em Kant e das ficções em Vaihinger. Adicionalmente, isso vai refletir o caráter ficcional das construções humanas em Nietzsche, onde se pode observar ainda a presença da coisa em si kantiana:
É preciso estabelecer este princípio: somente vivemos pelas ilusões – a nossa consciência aflora na superfície. Muitas coisas estão ocultas aos nossos olhos. Não há mais por que se temer que o homem chegue a se conhecer inteiramente, que ele penetre a cada instante em todas as relações de força (…) que são necessárias à vida. (…) São, além disso, somente fórmulas para forças absolutamente incognoscíveis. (Nietzsche, 2013, p. 349).
Se tomarmos essas denominadas ilusões como princípios reguladores, o trabalho de Otto Rank ganha uma nova dimensão. Kant via os princípios reguladores como ideias que não são conhecimento em si, mas na verdade estabelecem orientações e balizamento para os procedimentos do ato de conhecer. Os princípios constitutivos, no entanto, estabelecem os fundamentos para os objetivos e possibilidades do conhecimento fundamentado nos dados da experiência sensorial.
Essas ficções irão também implicar na aceitação do númeno como a esfera aonde é alocado o sujeito, tendo em vista o respeito com que Rank trata o sujeito, o qual ele nunca desacredita, reconhecendo sua sinceridade.
7. Vontade, afirmação e autonomia
Apesar de Kant negar espaço à metafísica, Schopenhauer, mesmo criticando Kant, irá criar uma metafísica ao considerar a vontade como a realidade última. Será devido a Schopenhauer que certas considerações sobre uma abordagem metafísica da vontade irão aparecer na obra de Otto Rank.
Lembremos que, em Kant, temos que o pensamento especulativo (expresso na Crítica da razão pura) irá reconhecer o mundo dos fenômenos como a sua fronteira, e nessa fronteira irá parar. Reconhecerá que não tem como conhecer a coisa em si. Porém, Schopenhauer irá considerar a coisa em si como sendo a vontade, e assim, naquele ponto onde o pensamento havia reconhecido a sua fronteira, Schopenhauer o fará prosseguir adiante, agora no discernimento da vontade como sendo a própria coisa em si.
Sendo, em Schopenhauer, um conceito metafísico, a vontade não depende de nada que seja biológico; na verdade, Schopenhauer coloca que os seres vivos chegaram à existência para suprir a falta que a vontade já continha em si.
Em suas considerações sobre o ser humano, Schopenhauer nos afirma que aquilo que na pessoa não é fenômeno é a vontade, o que significa que o ser, sendo a coisa em si, é também a vontade. A vontade se mostra pela sua representação, que se apresenta como sendo o mundo, e, assim, é percebida pelo sujeito – e, dessa forma, Schopenhauer nos afirma que para o sujeito está garantido o mundo.
O conceito de vontade em Schopenhauer, como o fundamento do mundo dos fenômenos, estará presente em Otto Rank. De fato, Rank nos diz que o indivíduo é:
(…) O representante temporal da força cósmica primordial, não importando se é chamada de sexualidade, libido, ou id. O ego, simultaneamente, apenas é forte no grau em que ele é o representante desta força primordial, e a intensidade desta força representada no indivíduo denominamos de vontade. (Rank, 1978, p. 4, tradução nossa).
Deve-se notar aqui o quanto Rank realmente acredita no sujeito e no ser, pois está aqui, implícita, a ética kantiana. Isso nos leva de novo ao contato de Rank com a metafísica de Schopenhauer, pois esse distanciamento do ser com o contexto social e histórico torna-se não apenas implícito, mas também necessário.
Igualmente, Otto Rank irá refletir o pragmatismo de Nietzsche em um amálgama com a metafísica de Schopenhauer, no aspecto de primazia da vontade perante a consciência e o intelecto:
(…) vontade, culpa e consciência se colocam diferentemente, porque a vontade, qualquer que seja a forma pela qual seja compreendida ou interpretada, se mantém como uma força em constante operação, enquanto a consciência, acima de tudo, é uma qualidade, um estado, e como tal é passiva e temporária, e, na verdade, momentânea. (Rank, 1978, p. 90, tradução nossa).
Enquanto que para Schopenhauer o ideal seria a aniquilação da vontade, pois ela é a compulsão incessante que não deveria existir e que causa dor, para Nietzsche temos o usufruto da potência de viver, sem a necessidade de um absoluto ou de um fim último.
Nesse contexto, pode-se afirmar que Otto Rank irá preservar:
- O aspecto neutro da primazia da vontade;
- O aspecto negativo de sua compulsividade;
- O aspecto positivo da vontade enquanto afirmadora pragmática da vida.
Influenciado pelos aspectos iluministas de Kant, Rank irá acrescentar sua epistemologia e ética quanto ao “determina-te a ti próprio por ti próprio”, donde poderemos acrescentar:
- O aspecto da autodeterminação, onde a pessoa irá transformar a compulsão em liberdade, fornecendo direcionamento à vontade por meio de um projeto de afirmação fundamentado pelo ser, o qual é concebido como númeno.
Importa aqui que a vontade não está mais subordinada ao fenômeno, mas sim ao númeno.
Para ilustrar a presença de Kant, vejamos aqui, por exemplo, a questão do tempo enquanto forma. Na epistemologia kantiana, a matéria do fenômeno constitui a sensação, e as formas são as estruturas que possibilitam ordenar o material proveniente da experiência (Mora, 1996, p. 305). O tempo, em Kant, é uma forma a priori dos estados internos do ser humano, ou seja, é a forma da sucessão das representações no ser humano, enquanto ordenamento da percepção interna. Otto Rank irá preservar o conceito kantiano do tempo enquanto forma da consciência, ao mesmo tempo em que podemos verificar a presença do conceito de Schopenhauer da compulsão, enquanto origem de dor:
Portanto, a partir do ponto de vista da psicologia das emoções, a consciência se mostra como um problema relativo ao tempo, no sentido de que o tempo representa a forma da consciência, e por meio deste fator de tempo, faz com que os diferentes conteúdos apareçam como prazer ou dor. A vontade, como a força direcionadora constante, luta constantemente para prolongar a prazerosa percepção de sua afirmação por meio da consciência, de modo a tornar o sentimento de felicidade duradouro, ou seja, redentor. Na medida em que esse prolongamento é bem-sucedido, é percebido como dor porque se torna uma obrigação. (Rank, 1978, p. 89, tradução nossa).
Como podemos observar, existe a percepção da mudança dos estados internos; para Kant, este é o próprio fundamento de nossa percepção do tempo. É preciso também ressaltar que, no texto acima, Rank menciona o tempo como forma da consciência, fazendo uso claramente da epistemologia kantiana.
8. O númeno e a contingência
É preciso compreender que Kant havia aceitado o ceticismo de Hume, mas não pôde aceitar as suas consequências morais, que para Kant seriam intoleráveis. Assim, o que ele colocou como sendo impossível de se estabelecer pela razão especulativa, ele estabeleceu pela razão prática, o que lhe permitiu defender a razão contra o ceticismo. Isso permitiu a Kant mencionar de forma legítima o “homo noumenon, ‘cuja peregrinação está no céu’. ” (Kant, 2012, p. 114), e isso sem precisar da metafísica, apenas
referindo-se ao mundo moral.
Onde isso encontra Otto Rank? Justamente no “inefável espírito” mencionado por E. James Lieberman na introdução do livro Psychology and the Soul, de Rank,
referindo-se à forma com que ele lidava com conceitos intangíveis, que para Freud eram apenas ilusão.
A experiência do númeno, concernente ao mundo moral, estará no âmbito dos princípios reguladores. Segundo Hans Vaihinger, as ficções mencionadas pelo jovem Nietzsche equivalem a princípios reguladores, delineando as fronteiras para o entendimento de uma realidade que é inexata e em constante fluir. Além disso, Denis Thouard nos recorda de que o númeno poderá ser pensado simbolicamente:
A imaginação se apropria disso, compelida por um impulso que pode ser compreendido subjetivamente, mas não pode ser acompanhado objetivamente. Esses domínios são deixados ao mito, à religião, à literatura, que têm o direito de suspender a referência. (Thouard, 2004, p. 75).
É preciso lembrar que, em Kant, o conhecer e o pensar não são equivalentes. Os fenômenos podem ser conhecidos e pensados, porém o númeno apenas pode ser pensado. Isso irá trazer grandes consequências. Muitas vezes se consideraria que algo que existe apenas simbolicamente não deveria ser levado em consideração. Se constituir apenas em um símbolo seria o equivalente a não existir. Porém, segundo Kant, aquilo que só pode ser pensado simbolicamente deve ser pensado simbolicamente, e irá estar presente na vida das pessoas corretamente enquanto um símbolo. Será justamente assim que teremos o mundo suprassensível, onde as determinações são unicamente morais e expressas por meio da vida simbólica.
Poderemos compreender a atitude de Rank em relação à cultura, legitimamente, por esse caminho.
Otto Rank frequentemente colocou que o ser humano deseja escapar das determinações puramente materiais e biológicas rumo a determinações espirituais. Aqui, “espiritual” tem o mesmo sentido de “cultural”, fruto das escolhas do ser no universo das determinações morais, onde a vontade humana pode atuar. À luz de Kant, tudo isso remete ao númeno, e não à ilusão. O uso legítimo da razão nos leva ao númeno, ao incondicionado; a razão nos autoriza a pensar nele, sem que tenhamos a presunção – ou a necessidade – de obter dele qualquer dado sensível, pois o dado sensível pertence ao fenômeno, enquanto que a lei moral, que se origina da razão, necessita não do fenômeno, mas do númeno.
Pela via do númeno, Rank nos falará do ser, que perpassa as diversas ideologias de imortalidade, contingentes aos diferentes contextos da história, que ajudaram a pessoa a buscar a sua perpetuação. Porém, a pessoa, enquanto ser, nunca deixa de existir, pois ela não depende dessas ideologias para ser, mas sim para se apresentar no mundo. O ser continua incólume, se apresentando como destacado dos contextos sociais, que estão fadados ao fracasso. Será aqui que se realizará a proteção da subjetividade: ela é concernente ao númeno, ela não se altera com o mundo do fenômeno.
É importante se compreender que apenas o ser possui uma qualidade fundamental no sentido moral – a qual é importante para o pensamento de Rank na questão de que o indivíduo não tem de se submeter ao fenômeno, visto que o ser reside no númeno. Apenas isto pode colocar o indivíduo como independente da contingência; igualmente, permite que Rank questione as limitações das diversas ideologias de imortalidade que se sucederam ao longo da história, sem desacreditar a pessoa humana e o ser.
A importância dessa colocação do ser “à parte” se encontra em descartar qualquer aspecto que erroneamente poderia ser considerado “essencial” dentro do mundo dos fenômenos. Por essa via, Rank segue Kant em relação à autodeterminação moral. Ou seja, o ser humano não deve estar moralmente condicionado a nada do mundo sensível. As propriedades de afirmação e expansão da vida, e concomitante afirmação do ser, não residem em nenhum aspecto do mundo sensível, mas em como a vontade se expressa para conseguir essa afirmação. Vemos, portanto, que o pragmatismo se inseriu no criticismo.
9. Afirmação e dignidade
Pelo uso das próprias leis internas da razão, que são concomitantes à percepção do mundo sensível, torna-se coerente um posicionamento de respeito em relação ao ser humano e à sua dignidade. Rank, que faz o relato da obsolescência das ideologias de imortalidade ao longo do tempo, no “eterno drama da vida”, em certo momento menciona uma “queda do pano” da saga histórica, quando o ser humano poderia existir apenas por si:
Os objetos de minha pesquisa inicial – o herói, o artista, o neurótico – todos retornam novamente ao palco, não apenas como participantes do eterno drama da vida, mas, igualmente, após a queda da cortina: sem máscaras, desnudos, sem pretensões. Não desacreditados em qualquer sentido, apenas humanos, enquanto eu mesmo não pretendo ser quem manipula as cordas, quem os diz o que fazer ou falar, nem quem os explica para a plateia.[1] (Rank, citado por Lieberman, 1997, p. 387-388, tradução nossa).
Assim, pode-se dizer que Rank considera o ser também fora da contingência histórica, onde o ser humano existiria mesmo depois de “haverem caído as cortinas do drama da vida”, onde o ser humano poderia existir “despido, sem máscaras, sem pretensões”, aonde ele poderia ser “apenas humano”, e em nenhum sentido poderia ser desacreditado.
Apenas no universo do númeno, aonde todas as determinações são morais, o ser humano pode ter assegurado o seu direito à dignidade moral, sem a necessidade de qualquer autoengano. Por esse motivo, se torna possível trazer essa vivência da ética para o mundo do fenômeno, da contingência. Se fosse de outra forma, a vida social seria um bloco monolítico de poder e dominação, onde cada membro da sociedade iria ser, para sempre, um cúmplice de sua própria dominação, sem a possibilidade de que o exercício da razão mostrasse outro caminho, pois uma crítica ao poder iria ser impossível para a faculdade da razão.
Podemos, nesse sentido, entender a pertinência da integração da epistemologia e da ética de Kant por Otto Rank, e, dessa forma, a correta colocação do ser da pessoa humana fora da contingência. A perspectiva de Rank, igualmente, também melhora nossa compreensão da pertinência do criticismo kantiano, que torna possível se evitar, simultaneamente, o dogmatismo e o ceticismo.
Colocando como o nosso ponto de partida os filósofos que influenciaram Rank em seu posicionamento, podemos dizer que a razão demanda que o ser esteja alocado fora da contingência, permanecendo incólume a ela. Ou seja, o ser necessita estar aonde Kant colocou o suprassensível: no mundo moral. Finalmente, se torna possível reconhecer a importância do repertório simbólico humano e suas manifestações, “sejam ilusões ou não”, pois a cultura, o sentido, e os valores humanos permanecem como afirmação na medida em que o ser habite o númeno.
Referências
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Vaihinger, Hans. A filosofia do como se. Chapecó: Argos Editora, 2011, 723 p.
[1] The subjects of my former interest – the hero, the artist, the neurotic – all come back once more on the stage, not only as participants in the eternal drama of life but also after the curtain has gone down: unmasked, undressed, unpretentious. Not debunked by any means, just human, while I myself do not pretend to pull their strings, to tell them what to do and say, nor to interpret them to the audience.
[2] …will, guilt and consciousness maintain themselves differently, for the will, however one comprehends or interprets it, remains a constantly operating force, while consciousness above all is a quality, a state, and as such is passive and temporary, yes momentary (Rank, 1978, p. 90).